Aprobado: 04/04/2022
Heloísa Maria de Morais Giannichi [1]
Resumo
Nos últimos 30 (trinta) anos, a população brasileira conheceu cinco programas de alfabetização diferentes. Estas alterações constantes e polêmicas ocasionam avanços ou retrocessos nas políticas públicas educacionais. Com o objetivo de compreender as propostas, a partir da perspectiva apresentada pelo Ciclo de Políticas do autor Stephen Ball e seus colaboradores, este artigo apresentou os contextos políticos, objetivos e metas, além dos impactos/resultados/efeitos gerados em cada implementação. Ao fazer a revisão dos documentos oficiais dos cinco programas analisados (PNAC, PCN, PROFA, PNAIC, PNA), concluiu-se que estes evidenciam as intencionalidades que um plano de governo almeja para a sociedade e quais ideologias os embasam, tornando-se compreensível as razões de seus fracassos e as motivações para constantes substituições, independente de seus efeitos, resultados e impactos.
Palabras clave: programas, alfabetização, ciclo de políticas
Abstract
In the last 30 (thirty) years, the Brazilian population has known five different literacy programs. These constant and controversial changes impact the advances in public educational policies. To understand these programs’ proposals from the perspective presented by the Policy Cycle Approach of Stephen Ball and his collaborators, this article presented their political contexts, the objectives/goals, and impacts/outcomes/effects generated. It was reviewed the implementation documents of the last five literacy programs (PNAC, PCN, PROFA, PNAIC, PNA). Thus, it was possible to conclude that they show the government’s intentions for the society and also the ideologies that underlie it. This way, the reasons for their failures and the motivations for the program’s replacement were highlighted.
Keywords: programs, literacy, policy cycle
Resumen
En los últimos 30 (treinta) años, la población brasileña ha conocido cinco programas de alfabetización diferentes. Estos constantes y controvertidos cambios provocan avances o retrocesos en las políticas públicas educativas. Con el fin de entender las propuestas, desde la perspectiva presentada por el Ciclo de Políticas del autor Stephen Ball y sus colaboradores, este artículo presentó los contextos políticos, objetivos y metas, como también los impactos/ resultados/ efectos generados en cada implementación. Al revisar los documentos oficiales de los cinco programas analizados (PNAC, PCN, PROFA, PNAIC, PNA), se concluyó que muestran las intenciones que tiene un plan de gobierno para la sociedad y qué ideologías los respaldan, haciendo comprensibles las razones de sus fracasos y las motivaciones para los reemplazos constantes, independientemente de sus efectos, resultados e impactos.
Palabras clave: programas, alfabetización; ciclo de políticas
Introdução
Nos últimos 30 (trinta) anos a população brasileira viveu cinco programas de alfabetização diferentes. Esses procuraram se adequar aos diversos contextos e às inovações de cada momento social, cultural, econômico e político. Contudo, nem toda adequação a esses contextos tornam a política pública eficiente e alcançam os efeitos que deseja na população.
Neste artigo vamos, a partir da abordagem do ciclo de políticas proposta por Ball (1992) e seus colabores, fazer um resgate histórico dos últimos cinco programas nacionais de alfabetização.
A análise das últimas propostas de políticas públicas para alfabetização no Brasil que vamos realizar compreende o processo de alfabetização como uma forma complexa de usar a linguagem. Essa é uma das capacidades mais evoluídas da nossa espécie.
Esse percurso foi traçado com o objetivo de apresentar uma forma para compreensão das políticas públicas de alfabetização brasileiras. Entender suas conquistas e fracassos por meio da abordagem de Ball e seus colaboradores é uma forma de analisar criticamente esses programas levando em consideração seus efeitos, impactos e resultados.
Segundo Mainardes (2006, p.48), é relativamente novo realizar análises das políticas públicas brasileiras a partir da abordagem do Ciclo de Políticas, especificamente na área da alfabetização que envolve muitos interesses políticos, econômicos e sociais.
Concepção de alfabetização
Para definir a concepção que vamos respaldar essa discussão, utilizaremos os estudos de Magda Soares (2011). Entre tantos referenciais teóricos que podemos usar elencarmos esta autora por ser uma referência viva da alfabetização no país. Também faremos uso dos estudos de outros autores ao longo deste artigo, mas acreditamos que as descobertas dessa autora podem ampliar nosso olhar para compreender as diversas facetas da concepção de alfabetização que atravessa a educação brasileira.
Soares (2011, p. 16) é enfática ao explicitar o que não é alfabetização. A autora revela que definir alfabetização como processo de representação de fonemas em grafemas e de grafemas em fonemas é apenas uma de suas facetas. É equivocado definir que alfabetizar é ensinar “a escrever o que se fala”. A língua escrita pressupõe especificidades morfológicas, sintáticas e semânticas, portanto, não se escreve como se fala.
É válido também destacar que o conceito de alfabetização tem suas variadas significações a depender do contexto e da cultura. Para analisar programas de alfabetização é muito importante que tenhamos a compreensão da diversidade desse conceito.
Houve um tempo em que se acreditava que a aquisição da língua escrita se dava apenas no ambiente escolar e que a interação com o professor era a única forma de se aproximar desse conhecimento. Portanto, era preciso ter um método correto para aplicação desse saber para que o estudante aprendesse.
Nesse artigo vamos analisar as propostas de métodos apresentados pelos programas federais, contudo defenderemos que a(o) profissional que está participando/mediando o processo de construção de alfabetização de um indivíduo deve possuir um arcabouço teórico amplo, estar apropriada(o) das mais diversas estratégias didáticas, para fazer as escolhas de intervenções mais coerentes e embasadas possíveis para que o aprendiz avance em suas aprendizagens e tenha garantido seu direito de aprender.
Voltando às definições de alfabetização, a autora Soares (2011, p. 18), afirma que uma teoria adequada/coerente para definir alfabetização precisa abranger a tecnologia “mecânica” do ler e escrever, o enfoque da língua escrita como um meio de se relacionar/expressar/compreender o mundo e a si mesmo, precisa demonstrar que é um processo autônomo e considerar os “determinantes sociais das funções e fins da aprendizagem da língua escrita”.
A compreensão que Soares apresenta sobre alfabetização, está relacionada com o que Ferreiro e Teberosky apresentaram em seu estudo sobre a psicogênese da língua escrita, publicado em 1979. As referidas autoras se pautaram nos estudos de Jean Piaget para embasarem a teoria sobre os processos de aprendizagem da escrita e em suas descobertas afirmam que ser alfabetizado não é aprender um “código”, é se apropriar de um sistema notacional.
Para compreendermos melhor essa afirmação vamos utilizar o estudo publicado por Morais (2012, p. 48). Ele afirma que as referidas autoras, Ferreiro e Teberosky insistiram em duas vertentes para desmistificar esse consenso que alfabetizar é algo mecânico, uma habilidade. A primeira é que não faz sentido para os estudantes que estão iniciando seu percurso de alfabetização ficar repetindo fonemas isolados, como que seu funcionamento e significado estivessem evidentes. “Os aprendizes não pensam ainda em fonemas como unidades isoladas”. Portanto exercícios comuns em livros didáticos e nas antigas cartilhas que trabalhavam as “famílias” das letras (acredito que muitos de nós aprendemos dessa forma, a cada semana uma nova “família de letras” para descobrir) não são estratégias didáticas adequadas para o contexto e necessidades atuais. A segunda vertente é que as regras do sistema de escrita alfabética são complexas, não serão aprendidas apenas com exposições intuitivas ao universo das letras e tampouco serão compreendidas espontaneamente. Não se passa de uma fase de aprendizagem para outra de forma instantânea. Há uma perspectiva evolutiva da aprendizagem. Para as autoras o aprendiz começa a fazer uso do sistema de escrita alfabética (SEA) quando compreende o que as letras notam, ou seja, representam e quando compreendem que essas criam notações, adquirem a compreensão sobre “como as letras funcionam para criar representações” (Morais, 2012, p. 49).
Ao compreender essas questões em profundidade, entendemos que a natureza do processo de alfabetização é “complexa, multifacetada” uma vez que abrange fatores psicológicos, psicolinguísticos, sociolinguísticos e linguísticos (Soares, 2011, p. 23).
Soares (2011, p. 35) afirma que o conceito de estar alfabetizado “depende inteiramente, de como a leitura e a escrita são concebidas em determinado contexto social; o alfabetismo é, nessa perspectiva, um conjunto de práticas governadas pela concepção de o quê, como, quando e por quê ler e escrever”. Ainda, a mesma autora, reitera que “entende por alfabetização a aquisição básica de leitura e escrita e dos usos fundamentais da língua escrita na sociedade em que o indivíduo vive” (Soares, 2011, p. 54).
Para além da apropriação e utilização dos conhecimentos de leitura e escrita, estar na condição de pessoa alfabetizada (depois de tantas barreiras que foram derrubadas para uma pessoa conquistar esse título) é uma forma de pertencer e democratizar a cultura, ter uma oportunidade de refletir, interagir, intervir no mundo de outras formas e sua posição nesse tempo/espaço é alterada. Acrescentamos a essa definição de alfabetização a contribuição de Paulo Freire. A concepção freiriana considera o ato de estar alfabetizado como uma transformação de uma consciência ingênua do indivíduo para uma consciência crítica, ou seja, a alfabetização concebida como “ato de reflexão, de criação, de conscientização, de libertação” (Soares, 2011, p. 119).
Vale desatacar que a contribuição de Paulo Freire com a alfabetização, não relata um método especifico (método entendido como uma fórmula mágica para fazer algo). O patrono da educação brasileira deixou como legado uma nova concepção de educação, de formação de sociedade e com isso uma nova concepção sobre o ato de alfabetizar.
Também entendemos que o uso da linguagem é uma das capacidades mais complexas da nossa espécie. Para haver comunicação é necessário que os recursos utilizados sejam compreensíveis e que esses sentidos sejam apropriados por outros indivíduos. Dessa forma, a linguagem compartilhável, compreendida e utilizada por grupos é elemento importante para caracterizar a constituição de uma comunidade verbal. Comunidade essa que não se torna homogênea apenas por compartilhar as mesmas formas de linguagem.
Sendo assim, a aquisição da linguagem, principalmente a escrita, proporciona que o indivíduo se aproprie de modos diferentes de organização das suas ações, amplia as possibilidades de acesso ao conhecimento construído e fortalece as possibilidades de pertencer, de fazer parte da sociedade, de adquirir e de produzir cultura são enriquecidas, uma vez que formas mais abstratas de interação são constituídas. Portanto, não é adequado reduzirmos a alfabetização para uma habilidade motora isolada e mecânica.
A Abordagem ciclo de políticas
Os autores, Ball e Bowe consideram que, em essência, eles têm complementado esse estudo desde 1992, uma política pública é composta por três contextos. Basicamente suas definições são:
O primeiro contexto de influência marca o início das conversas entre líderes e parlamentares para decidirem o que será feito para sanar determinada questão ou demanda da população.
É o momento em que as políticas são iniciadas, nele os grupos políticos definem suas intencionalidades, interesses e desmascaram suas verdadeiras ideologias para a função social da educação (Mainardes, 2007). É o processo legislativo da constituição de uma política pública. Esse contexto não sofre interferências apenas dos partidos políticos que estão no poder, mas também de outros setores de influência social, como as mídias, bancadas da agropecuária, religiosas, entre outras.
O segundo contexto de produção de textos políticos se caracteriza como a oficialização da ideia.
O contexto produção de textos políticos pode ter como prerrogativa, atingir o público mais geral. São os textos oficiais e legais como as portarias, decretos e os documentos curriculares das redes escolares, ou até mesmo os pronunciamentos oficiais realizados pelos políticos eleitos. Essas intervenções textuais carregam a normativa da política, porém ainda não são a concretização dela (Mainardes, 2007). Nesse contexto são declarados quais elementos dessa política serão negociados, quais discursos estão embutidos na proposta.
O terceiro contexto de estratégias políticas- quando as políticas ganham vida e começam a ser implementadas.
O contexto de estratégia política, que “envolve a identificação de um conjunto de atividades sociais e políticas que seriam necessárias para lidar com as desigualdades criadas e reproduzidas pela política investigada” (Mainardes, 2007, p.32). Ball et al (2016, p.18) afirmam que existem diferentes formas das políticas serem “interpretadas, traduzidas, reconstruídas e refeitas em diferentes, mas semelhantes configurações, cujos recursos locais, materiais e humanos, e conjuntos difusos de discursos e de valores são utilizados em um processo complexo e híbrido de atuação”. Esse processo dinâmico de atuação política é complexo, uma vez que é nele que o currículo é executado. O autor diferencia o processo de atuação do de implementação, destaca que este pode parecer mais autoritário, visto que suas condições vieram de “cima para baixo” (Ball et. al., 2016, p.18). Já o processo de atuação de políticas consiste na “reconstrução” que as equipes das escolas fazem para dar vida à uma proposta.
Os autores atualizaram esses estudos acrescentando mais dois contextos e alterando a palavra implementação, que pode indicar algo “de cima para baixo” para atuação, que seria a forma mais democrática de materializar um texto político. Eles consideram que as políticas, no nosso caso, quando chegam nas escolas, não são simplesmente implementadas, pois essas não chegam prontas como uma receita. Os textos políticos sofrem atuações das equipes das escolas, ou seja, a comunidade escolar ao receber um novo currículo, por exemplo, irá lê-lo de forma crítica. As equipes envolvidas vão questionar os pressupostos curriculares dispostos no documento, vão envolver suas visões de mundo, vão adequá-los à suas necessidades e preferências, enfim, lerão os textos com suas visões de mundo.
Os dois contextos são: o contexto de efeitos que foca nas questões de justiça, igualdade e liberdade individual, ou seja, os efeitos que as políticas públicas vão impactar para sanar desigualdades e vulnerabilidades; e o quinto contexto é o de estratégias políticas que “envolve a identificação de um conjunto de atividades sociais e políticas necessárias para lidar com as desigualdades criadas ou reproduzidas pela política investigada” (Mainardes, 2006, p. 55).
Ao compreender esses cinco contextos e transpor essa abordagem para o âmbito educacional, entendemos que as políticas públicas educacionais são registradas em currículos. É nesse tipo de texto que se constitui todas as ações, programas, metas, objetivos que a educação irá se pautar. Os currículos definem a identidade do projeto de sociedade que será buscado; ele é produto de uma determinada ordem discursiva, pois como destacam Moreira e Silva (2001, p. 7-8), “o currículo é considerado um artefato social e cultural”. Estando imerso em um contexto social, não há possibilidade de o currículo ser neutro, um documento despretensioso ou apenas uma normativa. Os autores definem:
O currículo está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares. O currículo não é um elemento transcendente e atemporal – ele tem uma história, vinculada a formas específicas e contingentes de organização da sociedade e da educação. (Moreira; Silva, 2001, p. 7-8)
Nesse sentido, é no currículo que encontramos as subjetividades da formação, da construção das propostas de ensino, da produção histórica, cultural e social que pretende se desenvolver. Para que sejam implementados os currículos podem se desdobrar em programas, materiais didáticos, projetos, entre outras ações que dão possibilidades de vida para esse texto.
São muitas as definições de currículo que a literatura apresenta. A selecionada para esse percurso é do autor brasileiro renomado Tomaz Tadeu da Silva:
O currículo tem significados que vão muito além daqueles aos quais as teorias tradicionais nos confinaram. O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo é nossa autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade. (Silva, 2007, p. 150).
Essa definição tão sensível e potente, elucida o quanto é complexa discussão sobre políticas públicas, ainda mais dentro do contexto de alfabetização que demarca uma constante luta de poder.
A partir desse e de outros aportes teóricos que vamos analisar as últimas políticas públicas para alfabetização que o nosso país publicou.
Análise dos programas nacionais para alfabetização
A abordagem do Ciclo de Políticas destaca a complexidade e como uma política pública educacional pode ser controversa. Utilizar essa abordagem para fazer análises de programas é uma forma de anunciar que a política pública explorada será considerada como algo flexível, dinâmica, orgânica, uma vez que todo seu conjunto será considerado: processos micropolíticos, ação de profissionais que lidam com as políticas e a articulação com os processos macropolíticos.
Nesse artigo, como exposto anteriormente, consideramos principalmente que a política pública não é implementada, pois esse termo, segundo Ball et. al. (2016), não declara o dinamismo e a organicidade que essa tem. Os autores defendem uma política pública é atuada, uma vez que depende de inúmeros fatores para se tornar realidade e causar impactos, efeitos e resultados.
Mainardes (2006, p.54) ao explicar o quarto contexto do Ciclo de Políticas mostra que impactos, efeitos e resultados, são palavras antônimas para o campo de análise de políticas. Resultados são conclusões de percursos mais diretivos, estão diretamente relacionados com as metas e por vezes mensuráveis. O autor considera que efeitos são as mudanças estruturais e práticas que a política pública causou e como essas se apresentam nos diferentes locais ou no sistema como um todo. Os impactos seriam os efeitos de segunda ordem, ou seja, mudanças mais profundas e transformadoras, pois indicam as mudanças nas oportunidades de diminuição de desigualdade social.
Portanto, considerar a política pública como atuada para além de implementada é percebê-la que essa gera resultados, efeitos e impactos.
O pesquisador Apple (1995) também se aproxima da concepção de atuação de política pública de Ball, et. al. (2016). O autor define essa teoria como um pouco além da “implementação de políticas”, pois a atuação política não considera sua ação de forma linear (políticos e órgãos centrais constroem os textos e esses são implementados pelos profissionais da escola), mas considera:
[...] diferentes tipos de política tornam-se interpretadas, traduzidas, reconstruídas e refeitas em diferentes mas semelhantes configurações, cujos recursos locais, materiais e humanos, e conjuntos difusos de discursos e de valores são utilizados em um processo complexo e híbrido de atuação [...] vemos a atuação de políticas como um aspecto dinâmico não-linear de todo o complexo que compõe o processo da política, do qual a política na escola é apenas uma parte. (Ball, et. al., 2016, p. 18-19).
Portanto, não importa o texto se esse não considerar as especificidades de quem dará vida à ele e os resultados, efeitos e impactos que serão causados nessas vidas. Também é importante frisar que todos os textos, por meio das linguagens se apropriam, tem posicionamentos, são marcos de atos políticos, não há neutralidade.
Diante disso, vamos identificar os seguintes pontos que, consideramos como principais para compreendermos essa trajetória de descontinuidades dos programas de alfabetização nacionais dos últimos 35 anos:
· Ano de criação;
· Presidente- governo- momento político;
· Objetivo;
· Impacto.
Os programas foram:
· PNAC- Plano Nacional de Alfabetização e Cidadania – publicado em 1990
· PCN- Parâmetros Curriculares Nacionais- publicado em 1997
· PROFA- Programa de Formação para Professores Alfabetizadores- publicado em 2000
· PNAIC- Pacto Nacional de Alfabetização na Idade Certa- publicado em 2012
· PNA- Política Nacional de Alfabetização- publicado em 2019
Apresentaremos a seguir os contextos políticos desses programas, seus objetivos/metas, resultados, efeitos e impactos.
Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania - PNAC[2] (1990)
Em 1990, logo após a publicação da Constituição Federal de 1988 que colocou a educação como direito inalienável, foi publicado o Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania.
O programa é um importante marco para os rumos da educação pós período de ditadura, porém o Brasil ainda estava em uma fase conturbada com Fernando Collor na presidência. Esse se propunha a reduzir 70% da taxa de analfabetismo do país em 4 anos.
O discurso do PNAC soava como um respiro em meio ao caos, contudo, esse “fio de esperança” durou poucos meses. Em dezembro do mesmo ano o governo anunciou o Programa Setorial de Ação do Governo (esse fazia indicação ao acesso à educação pública e aos altos números de evasão) então o programa educação promissor se tornou um subprograma. Mello e Silva (1992) descreveram que:
Ao invés de definir com objetividade quais são as prioridades do governo, elenca uma série de medidas que atingem desde a pré-escola até a universidade, passando pela educação ecológica, sem especificar exatamente em qual ou quais níveis de ensino se concentrarão as atenções do governo federal. E a questão da qualidade do ensino acaba sendo nada mais do que um item dentro do Programa. (Mello; Silva, 1992, p.9)
Segundo as autoras, o PNAC, mesmo em um contexto econômico e político devastado, movimentou/animou o ramo da educação, mas por causa da sua demora para ser colocado em prática e criação acelerada de programas federais maiores que não tinham suas formas de execução evidentes, não emplacou e não atingiu seus resultados.
Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN[3] (1997)
Após o impeachment, novamente aconteceu uma lacuna na história da educação brasileira.
Em dezembro de 1996 foi publicada a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, LDB n. 9394, sob o mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, portanto foi um período que o país estava se aproximando de ideiais neoliberais para seu desenvolvimento.
Com essa nova normativa um currículo nacional se fazia urgente e necessário, então em 1997, o Ministério da Educação e Desporto publicou os Parâmetros Curriculares Nacionais. Esse foi o documento curricular nacional que teve a vigência mais duradoura.
O documento foi entregue aos professores do Brasil com o objetivo de que todos pudessem explorar seus exemplares na íntegra para utilizá-los em suas aulas e planejamentos. Esse buscou ser a referência de qualidade do ensino. Além de trazer os blocos de conteúdo de forma sistematizada, os PCNs organizaram o Ensino Fundamental em quatro Ciclos e elencaram os objetivos de cada componente curricular para cada etapa. Apesar de ter delimitado o conteúdo que cada Ciclo deveria desenvolver, em seu documento introdutório, se apresentou como “flexível” e que daria abertura para que cada região fizesse suas adaptações necessárias.
A meta exposta no documento era seguir o ideal de uma crescente igualdade de garantia de direitos entre os cidadãos pautados nos príncipios democráticos. Defendia que essa igualdade se daria por meio do acesso à totalidade dos conhecimentos socialmente relevantes, uma vez que esses são bens públicos.
Os PCNs cumpriram a sua função de nortear os currículos das redes de ensino públicas e privadas. Até a publicação da BNCC essa era a referência nortedadora. Outro fator que deve ser destacado é que o documento trouxe de forma tímida os temas transversais como: meio ambente, saúde, orientação sexual, pluralidade cultural. Ainda não abordou a diversidade com o compromisso que era necessário, mas deu início a essa discussão.
Em relação à alfabetização os PCNs apresentaram em 1999, como primeira proposta, o programa de formação para professores alfabetizadores chamado “PCNs em Ação” que foi reestrturado e implementado como PROFA, apresentado a seguir.
Vale ressaltar que esse documento trouxe mudanças significativas para a alfabetização uma vez que a compreensão do ato de ler troca de lugar com a decodificação. A escrita começa a ser compreendida e implementada em todo país como uma prática social contextualizada.
Programa de Formação de Professores Alfabetizadores PROFA[4] (2000)
Logo após a publicação dos PCNs e um tempo para sua compreensão, o MEC lançou em 2000 o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores. Esse longo programa de formação que teve como uma de suas referências a renomada professora Telma Weiz tinha como objetivo oferecer novas técnicas de alfabetização pautadas em estudos realizados por uma rede estudos internacionais.
O programa tinha como referencial teórico a obra Psicogênese da Escrita de Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1985). Esse se propunha, de forma mais incisiva que a primeira tentativa de formação, a desconstruir os saberes dos professores relacionados com os métodos fonéticos de alfabetização e propor que os estudantes deveriam ser alfabetizados por meio de situações que os façam refletir, questionar, inferir e atuar sob o sistema de escrita. Sendo assim, a simples correspondência entre som e letra/palavra, não fazia mais sentido para essa geração de aprendizes. O PROFA defendia que os professores considerassem os conhecimentos prévios dos estudantes e que as escritas e estudos sobre os sistemas de escrita partissem de portadores que faziam sentido para elas.
O PROFA se estendia para professores alfabetizadores de todos os segmentos da educação básica, tinha pautas de formação fixas e a duração de um ano.
O programa sofreu muitas críticas negativas dos professores adeptos aos métodos mais tradicionais de alfabetização. Há pesquisadores que dizem que esse programa teve um grande impacto na formação de professores não só da rede pública como também da privada, mas os pesquisadores que dizem que esse programa não cumpriu com seus objetivos formativos, uma vez que, de forma implícita, o programa culpabilizava os professores pelo fracasso do processo de alfabetização dos estudantes (Becalli; Schuwartz, 2011). Esse ainda é utilizado como referência dos programas que vieram posteriormente.
Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa - PNAIC[5] (2012)
O Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa, criado em 2012, na gestão Lula e teve continuidade na gestão de Dilma Roussef, fazia parte de um programa maior do MEC intitulado Mais Educação.
O PNAIC expandiu o Ciclo de Alfabetização para 3 anos, com a obrigatoriedade das crianças estarem alfabetizadas até o final do terceiro ano. Essa alteração se deu, principalmente por causa da implementação do ensino fundamental de 9 anos e sofreu muitas críticas negativas, pois muitas pessoas de alguma forma relacionadas com a educação achavam que era muito tempo para aprendizagem do sistema de escrita alfabética.
O programa defendia uma concepção de alfabetização na perspectiva do letramento. Insistia no trabalho com a reflexão sobre a escrita e leitura de forma contextualizada e articulada com os objetos de conhecimentos das demais áreas não só em Língua Portuguesa. O documento frisava a importância da valorização da diversidade e da cultura local. Alfabetizar letrando, cultura do escrito e diversidade eram os fios condutores desse documento.
A formação que durou cerca de 5 anos, após o impeachment da presidenta Dilma as ações do MEC ficaram incipientes, abordou as seguintes temáticas para a atuação dos professores no Ciclo de Alfabetização: Linguagem (2013), Matemática (2014), Natureza e Sociedade (2015) e Avaliação (2016). Em 2017 e em 2018, a orientação era que as formações deveriam se desdobrar nas escolas com os professores e coordenadores pedagógicos a fim de fortalecer os procedimentos de formação em serviço e compreender as demandas de alfabetização de cada território. Mais uma vez a política pública não conseguiu encerrar seu ciclo de vigência.
Com o programa também foi implementado a Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA) que tinha como intuíto complementar as informações sobre essa aprendizagem colhidas pela Prova Brasil. As primeiras edições da ANA revelou os baixos níveis de alfabetização dos estudantes, houve uma mobilização das equipes das redes públicas, porém sem muito impacto nos resultados.
Há um volume grande de pesquisas acadêmicas sobre o PNAIC (em uma busca rápida no banco de teses e dissertações da capes aparecem 384 resultados com o nome do programa no título e que foram realizadas no período de 2013 a 2020) em suas mais variadas vertentes (em relação à linguagens o número é mais expressivo), com isso, podemos analisar que há os defensores do programa que manifestam que esse gerou grande impacto na formação dos professores e com isso na aprendizagem dos estudantes, mas há também os pesquisadores que acreditam que o programa teve pouca relevância no país e que foi implementado com pouca sistematização.
Programa Nacional de Alfabetização- PNA (2019)[6]
Em abril de 2019, o presidente Jair Bolsonaro, publicou o decreto n. 9765, que regulamenta a Política Nacional de Alfabetização (PNA), “Alfabetização acima de tudo”. O polêmico decreto coloca o método fônico como primordial para alfabetização, dispõe sobre o conceito de literacia (ao invés de letramento) e envolve a família como participante formal desse processo, abrindo portas para possíveis legalizações do “homescholling”. Seus objetivos são (p. 15):
Art. 4º São objetivos da Política Nacional de Alfabetização:
I - elevar a qualidade do ensino e da aprendizagem no âmbito da alfabetização, da literacia e da numeracia, sobretudo nos primeiros anos do ensino fundamental, por meio de abordagens cientificamente fundamentadas;
II - contribuir para a consecução das Metas 5 e 9 do Plano Nacional de Educação de que trata o Anexo à Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014;
III - assegurar o direito à alfabetização a fim de promover a cidadania e contribuir para o desenvolvimento social e econômico do País;
IV - impactar positivamente a aprendizagem no decorrer de toda a trajetória educacional, em suas diferentes etapas e níveis; e
V - promover o estudo, a divulgação e a aplicação do conhecimento científico sobre literacia, alfabetização e numeracia.
Os pesquisadores participantes da construção dessa política defendem que o diferencial dessa proposta está em sua base teórica ser pautada em métodos científicos. Essa política compreende a língua como um código que precisa ser decodificada para ser entendida. Concepção essa, como vimos nos programas anteriores, vêm tentando ser desmistificada.
Como o documento é recente ainda não há pesquisas sobre seu impacto. Por enquanto a única ação formativa para professores e redes compreenderem essa política é o curso aberto, online proposto pelo MEC: “É tempo de aprender!”
Conclusão
Em diversas obras Paulo Freire afirmou que a educação não é neutra, natural, ela é atravessada por princípios ideológicos, por interesses para tomada de poder, por isso é inerente das relações humanas e isso fica evidente nessa breve análise dos programas. A política pública como um conjunto de ações que os governos, em parceria ou não com outros setores, constroem e viabilizam com o objetivo de garantir os direitos dos cidadãos. Para esse contexto, entendemos então que, políticas públicas para alfabetização são as ações que o Estado tem feito para garantir que os brasileiros sejam alfabetizados, contudo, como podemos verificar os programas não alcançaram os resultados, efeitos e impactos que se propunham.
As justificativas desses fracassos podem ser por falta de tempo de vigência, por falta de ações consistentes, por falta de engajamento profissional ou até mesmo por falta de credibilidade ao se pautar em uma teoria obsoleta. Soares (2004, p.9), coloca que a condição de fracasso na alfabetização brasileira é histórica:
Fracasso em alfabetização nas escolas brasileiras vem ocorrendo insistentemente há muitas décadas; hoje, porém, esse fracasso configura-se de forma inusitada. Anteriormente ele se revelava em avaliações internas à escola, sempre concentrado na etapa inicial do ensino fundamental, traduzindo-se em altos índices de reprovação, repetência, evasão; hoje, o fracasso revela-se em avaliações externas à escola – avaliações estaduais (como o SARESP, o SIMAVE), nacionais (como o SAEB, o ENEM) e até internacionais (como o PISA) –, espraia-se ao longo de todo o ensino fundamental, chegando mesmo ao ensino médio, e se traduz em altos índices de precário ou nulo desempenho em provas de leitura, denunciando grandes contingentes de alunos não alfabetizados ou semi-alfabetizados depois de quatro, seis, oito anos de escolarização.
Vale destacar que o fracasso escolar, não depende e não é culpa apenas da escola, há um conjunto de fatores corresponsáveis para essa situação. É preciso analisar o fracasso em todas as suas dimensões que são: cultural, social, pedagógica e política. Portanto, podemos afirmar que o fracasso escola acontece por meio de fatores extraescolares (condições de vida da população) e intraescolares (currículo, propostas pedagógicas, programas, projetos, condições de trabalho dos profissionais da educação, instrumentos de avaliação internos e externos).
Sendo a educação um ato político e que por sua vez desenha e conduz o projeto de sociedade que se objetiva, a inegável que o fracasso escolar está relacionado com a pobreza e negligência política e econômica que assolam nosso país.
A luta por uma realidade libertadora e autônoma é para uma vida inteira e essa é conduzida por um movimento político. A luta está na busca de valorização da escola pública, está na luta para que os estudantes não evadam, está na qualificação, boa remuneração e reconhecimento do papel social do professor da educação básica, está na garantia dos direitos de aprendizagens dos estudantes, no espaço acolhedor, limpo e digno que as escolas devem ser, está nas condições favoráveis de trabalho, pincipalmente no que diz respeito a segurança.
Em relação à alfabetização a luta é a súplica para que todos os cidadãos tenham a oportunidade de participar da sociedade e que tenha condições de fazerem escolhas.
Referências
Apple, M.; Stephen, M. & Braun, A. (1995). Trabalho Docente e Textos: economia política das relações de classe e de gênero em educação. Artes Médica. Trad. Janete Bridon. Editora UEPG.
Ball, S. & Mainardes, J. (2011). Políticas Educacionais: questões e dilemas. Cortez Editora.
Becalli, F. Z.; Schwartz, C. M. (1990). Uma leitura acerca de vinculações entre o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA) e reformas político-educacionais desencadeadas no Brasil a partir da década de 1990. Revista Teias, 12 (24), Artmed.
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[1] Pedagoga. E-mail de contacto: [email protected]
[2] Para se aprofundar sobre o PNAIC leia o relatório publicado pelo INEP em 1993 - http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me000624.pdf
[3] Todos os documentos PCNs estão disponíveis no site do MEC- http://portal.mec.gov.br/pnld/195-secretarias-112877938/seb-educacao-basica-2007048997/12640-parametros-curriculares-nacionais-1o-a-4o-series
[4] O documento completo do PROFA: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Profa/apres.pdf
[5] Acesse o documento orientador completo do programa: http://pacto.mec.gov.br/images/pdf/doc_orientador/doc_orientador_versao_final.pdf
[6] Para aprofundar os estudos acesse o caderno de Orientações PNA completo - http://portal.mec.gov.br/images/banners/caderno_pna_final.pdf